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GAEL
Gael subiu a gola, esquentou as mãos nos bolsos, cambaleando bem cedo, não queria perder o ônibus. Trabalhava numa pequena lanchonete do outro lado da cidade. Apesar de mal condicionada, era bem movimentada, no estilo lanchonete de bairro. Não era o emprego de seus sonhos, havia de se conformar, as escolhas foram se diluindo com o tempo.
Durante a dura rotina, procurava fazer a vida valer a pena. Havia clientes que tomavam café todos os dias na Lanchonete do Pedrinho, era quase um ritual que dia após dia, ano após ano, fazia poucos conhecidos, os trabalhadores da fábrica, os professores da escola e outras pessoas que ali passavam sempre no mesmo horário.
Sua obrigação no trabalho era chegar cedo, abrir a lanchonete, varrer, preparar os lanches, atender e deixar tudo pronto para o dia seguinte. Sob o comando de Pedro Mineiro, Gael era o único funcionário. Pelo tempo que dedicou ao ofício, gozava o título de gerente dos negócios. Não era orgulho, mas um acúmulo de responsabilidades. Queria mesmo era mandar o patrão se lascar.
Pedro Mineiro era um homem com gosto pelo comércio. Vivia com seu pai, e todo dinheiro que pegava era para sair com a Madame. Andava com uma sandália amarrada no arame e tinha os dentes frouxos. Sempre que abria a boca, só sabia falar besteiras. Às vezes, Gael perdia a paciência e comprava desafetos.
"Pedrinho Mineiro era mesmo um homem só com o corpo andando no mundo. Não saía dele uma palavra humana capaz de acalentar o próprio pai. Mas para a Madame, era o suprassumo do luxo. Pedro Mineiro tinha um chapéu velho mais encardido que o pano da pia da lanchonete. Fazia três anos que ele usava a mesma camisa que tinha ganho de um vereador. Mas, para a Senhorita, era banho de loja e perfume importado. Ela vivia de carro pra cima e pra baixo, trazendo e levando sacolas caras. Quando aparecia na lanchonete, ele ficava doindinho 'Dorinha veio me visitar'. O bicho era o mais abestalhado que já vi na vida. A mulher vivia mais enfeitada que penteadeira. Obrigou Pedrinho a trocar de carro só pra ir a um casamento. Agora, trabalha feito cão pra andar numa Hilux no fim de semana. Ô homi besta. Na verdade, às vezes acho que Pedrinho deve ter seu valor, pois, tudo feito por ele para sua Madame, precisa de uma certa dose de valor humano ou o homem viveria em trevas piores em que vive. No fundo, a Madame o faz mostrar seu lado bom. Não sei. Eu sei que ele me deve. Ah sim, isso sim... Ele me deve dinheiro pela doidice adquirida nessa estufa cheirando a gordura, e me deve por aguentar a Madame olhuda. Ainda me deve por não ser entregão. Se ele soubesse..."
Da infância, Gael expurgou da memória até os pais adotivos. Depois do fardo que carregou com o casal maluco, restaram apenas medos e anseios. Tornou-se um homem medroso, de porte subordinado e rosto amuado, passando grande parte da vida sozinho, numa casa de dois cômodos cheia de livros e baratas. Desde cedo, quando Gael adotou a obsessão pelos livros, suas angústias se resolviam gastando quase tudo em coleções de gibis e literatura urbana. Pelo menos, sabia-se que ele possuía em casa mais livros do que baratas.
Com o tempo, muita gente passou a doar a Gael os amontoados de livros que iriam pra incineração, nem tudo ele lia, é lógico, é humanamente impossível de se ler todos os livros de uma prateleira. Mas Gael, assim como todos os apaixonados, achava de haver tempo pra guardá-los em sua mente assim como guardava em sua alma. As palavras eram maleáveis, generosas; as pessoas, rígidas, excessivamente vaidosas, não sabia enfrentar um ser humano, preferia um livro de mil páginas, por isso vivia assim e certamente morreria assim.
A polícia chega até Gael...