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Por
Barbacumba
2023

Produção
Cemitérios Sagrados

TÔNIA

"A cidade é à noite, os homens; pois, nela estão vivos"

Esteja atento...

Tônia retocou o brilho dos lábios, escureceu os cílios e fez bico. Com seu espelho de bolso, ia puxando os cachos do penteado enquanto falava consigo mesma. Havia uma sinceridade no modo como encarava as coisas. Não subestimava qualquer ponto frágil que a incomodasse, mas não se abalava pelas severas imposições do mundo. Era uma mulher exata em certas horas, imprecisa em outras. Às vezes, resolvia sair de vestido e sandálias, com um lenço segurando os cachos; outras vezes, com os cabelos lisos ou mal se importava. Apesar de não impor rigor à aparência, atraía uma legião de admiradores para seu ninho. Ela deixava um charme peculiar, um desleixo interessante, para ser mais justo, um descuido desproposital que combinava com seu temperamento.

Vestida com uma legging Sparta, blusa de manga a meio braço e salto baixo, não chamava exatamente a atenção, mas deixava uma presença misteriosa que inspirava curiosidade. Alimentava uma sutil vaidade que a tornava mais segura. Seus olhos eram grandes, de um branco infinito e rara beleza.

Tônia parecia profunda, tão profunda a mergulhar dentro de si mesma. Não era uma atitude de desprezo ou flagelo, era ela assim como o mundo a fez, quieta, não expunha mistérios guardados a sete chaves, feito um vulcão adormecido.

Na cidade onde vivia, uma cidade de médio porte na região metropolitana do Recife, concentrava-se um amontoado de pessoas e barulhos. Para se sentir segura, alugou uma pequena casa próximo da mãe. Dona Marta também vivia sozinha, após o marido morrer bem antes do tempo.

Decidiu conviver melhor com a filha, deixou de lado o passado maldito, dando-se conta do caminho ainda por seguir. Decidiu abandonar a pele morta, após perder os três maridos praticamente da mesma forma, além do pai de Tônia, acometido por um câncer violento. Casou-se três vezes antes dos quarenta anos, mas os homens foram morrendo um a um em seus braços, e consequentemente, a vida veio lhe cobrar a idade.

Desistiu desse negócio de homem, era aposentada, tinha uma casa numa vizinhança de pessoas comprometidas. Ela achava que só assim a depressão não a acometeria. Dona Marta, mesmo não tendo uma rotina de muitas obrigações, encontrou um jeito de se achar útil. Cuidava de um belo jardim no terreiro, passava o dia limpando a horta, regando as flores e remendando alguns consertos de casa, costurando, cozinhando.

Quase sempre, no fim da tarde, esperava a filha para a janta. Preparava torradas e café com leite, deixava a sandália da filha e a toalha dobrada carinhosamente na porta da cozinha. No entanto, Tônia muitas vezes não tinha o mesmo entusiasmo para esses rituais familiares. À noite, após o trabalho, recolhia-se com todos os seus pequenos luxos, ligava a TV e só acordava no dia seguinte.

O inverno chegava mais uma vez, apagando algumas cores e transformando pessoas em pequenas ilhas dispersas. Era o começo da noite, no largo das avenidas, um tapete colorido se movia vagarosamente. Os homens e mulheres se viam calados e os ônibus fumegavam de gente. Tônia viu as horas, tirou o casaco da bolsa e se abestalhou com o engarrafamento. Criava-se ao longo da faixa um enorme espelho por conta da chuva, as luzes refletiam os tons da cidade em câmera lenta.

Não havia tanta pressa, mas as horas pareciam sucumbir ao clima. Nos cantos escondidos, as ruas pareciam redutos agressivos. O inverno vascolejava os céus a cada chuva, trazendo desencantos, com o tempo querendo mais uma vez avisar um mau presságio ou desenterrar nossa imaginação. Talvez fosse apenas a chuva caindo sobre os homens.

Os carros corriam mansos. Na parada de ônibus, Tônia sentiu-se fria, baixou a guarda, de braços cruzados evitando angústias, deixando de lado problemas de outras horas. Abriu mais uma vez a bolsa dispersa e se assustou quando alguém a chamou pelo nome, cutucando seus ombros.

Era Gael bastante nervoso. Sorriu de forma estranha, tentando tirar algo da bolsa. Com certeza, tinha algo a fazer ali.

Tônia deu dois passos para trás, afastando-se sem deixá-lo esboçar mais nenhuma reação. Ela o observou fazendo gestos imprecisos, não era a reação esperada por ele. Com uma mão dentro da bolsa e a outra bem rápida, fez Tônia se sentir ainda mais desesperada. Ela aguardava que ele tirasse uma arma daquela bolsa e começasse a atirar, mas Gael não teve tempo de retirar o que pretendia.

Tônia viu a oportunidade de fugir desesperadamente, entrou em uma rua desconhecida, saiu em outra pouco iluminada, perdeu-se entre encruzilhadas e sumiu como fumaça nas entranhas da cidade, seus olhos saltando de medo. "Seria um assalto seguido de morte", pensou paranoica. Pegou o celular e discou o número da emergência, mas não concluiu a chamada. Quando se sentiu segura em uma farmácia da Domingos Ferreira, foi amparada pelos funcionários.

Do outro lado da avenida, Gael estava ainda mais desesperado. Ele parecia muito mal, tenso, sob o efeito de um sentimento culposo. Nem sabia para onde ir, temendo dar de cara com a polícia. As mãos trêmulas e o olhar fugidio entregavam a besteira que acabara de fazer, acometido por um arrependimento imediato e avassalador. "Que besteira eu fiz, que besteira! Ela vai chamar a polícia. Porcaria!

Pelo que houve, não foi somente desprezado, foi confundido com um criminoso. Tônia sentiu sua presença pela primeira vez da pior forma possível. Aquele dia chuvoso para ele seria lembrado com rancor por muito tempo. Uma jovem, há muito morando em seus desejos, agora guardava-o na mente tal uma imagem de terrível experiência. Isso foi o fim, pois sua índole havia sido rasurada.

Tornar-se o temor da mulher que admirava afastaria qualquer chance de aproximação. Bem mais que isso, corria o risco de ser preso, ir para a cadeia pela suposta tentativa de um crime no qual ele nem sabia. Deveria esquecer essa maluquice, procurar a delegacia e pedir desculpas. Simplesmente seguir a vida, como sempre fez. Gael, desde então, se tornou uma ilha, isolado. A decepção o fez ocupar seu lugar, o Gael de sempre.

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E aquele real perdido no fundo do Pix?

amilton@cemiteriossagrados.online