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Cavalo do Cão
Assim que chegou à porta de casa, Tereza largou os trambolhos no chão, a bolsa, as frutas, as roupas sujas. Encaixou os cadernos entre as pernas para procurar suas chaves. Talvez as tivesse deixado no ônibus ou perdido no caminho de tijolos. Olhou para os lados e pensou em voltar. Havia papéis velhos, carteira, um kit de maquiagem, menos as chaves em sua bolsa. Encabulada, certificou-se mais uma vez, meio que sem pensar, jogando seus pertences no chão para confirmar que não era displicência, mas elas definitivamente não estavam lá. 'Poderia ter ficado no ônibus', pensou.
Sabe lá deixou no trabalho, na hora em que se despediu das amigas? Não se lembra de tê-las abandonado no balcão, simplesmente poderiam ter ficado no banco do ônibus. Tinha que encontrar. Viu a tempestade desencorajando-a, mas decidiu voltar por onde veio. Se estivessem onde ela passou, iria encontrá-las.
Tereza caçava o chaveiro com as mãos afundadas na lama, apalpando a grama e chutando as pedras no meio da rua, esperançosa que as chaves estivessem no o único caminho que faz todos os dias.
O céu despencava um cinza escuro, deixando a noite mais odiosa, em volta das pedras formavam-se pequenos córregos provocados pela grande quantidade de água que teimava em testar sua disposição abalada. Agachada no meio da tempestade, atrás de um objeto quase invisível na escuridão do campinho, Tereza desistiu daquilo, iriam chamá-la de louca, balançou a cabeça. "Que porcaria!"
Quem sabe não precisaria das chaves para entrar em sua própria casa, pularia a cerca e abriria a porta dos fundos. Até mesmo se forçasse uma brecha na parte mais frágil da janela, poderia entrar. O caso era aquele, estava certa, também porque as botas cheias de água encruavam os dedos dos pés. Daí encarou o fato, iria mais uma vez voltar para casa e resolver como pudesse resolver.
Mas algo estranho naquele momento haveria de acontecer, ouviu uns passos encharcados à espreita, o barulho foi se aproximando, até que ela expulsou uma expressão dramática. Realmente era algo em sua passada e antes que atravessasse o campo vazio, não mais que alguns passos à sua frente, um homem sentado em um enorme cavalo a interceptou.
Não lhe dava para ver o rosto, apenas uma silhueta desalumiada. No escuro, brilhavam os arreios do cavalo e uns brasões vindo de suas botas, parecia soltar um ronco, vindo, só não sabia se onde.
Tereza soltou um grito assustado e o engoliu na mesma hora. Sem saber como agir, batia os lábios, enquanto a chuva a deixava pálida, quase desfalecida.
Frente àquela aberração, qualquer homem ficaria de dobrar os joelhos. O cavalo pesava mais que o maior dos elefantes e mordia um osso ainda carnudo que diminua a cada mastigada que dava. As patas agitadas batiam no chão de tanta raiva.
Cada vez mais impunha seu tamanho, cara a cara com uma mulher pequena, paralisada pelo temor. Seu corpo, ao tronco do bicho, contava uns seis metros ou mais, tamanha diferença era. O enorme cavalo do cão empolgava com mais fome do que raiva.
Com seus monstruoso dorso, longa crina, sacudia o corpo pra escorrer a água. Os pelos chicoteavam, arrepiavam, cobriam todo o pescoço, semelhantes a asas desfiadas. O pior estava por vir, a besta fera levantou os cascos.
Uma criatura de pé, batendo uns dez metros de altura, possuído com a fúria dos trovões, começou a pisotear Tereza sem dor. Uma cena aterradora. Sapateou seu frágil corpo com as patas duras, feitas de couraça, até que sobrassem apenas um carcaçal de carnes e ossos.
O cavaleiro do demônio olhava para os restos mortais. Via-se, no lugar de sua face, um obsesso tão fundo, tornando impossível ver seu rosto.
Após isso, vagarosamente, mastigou cada pedaço que pôde, ficaram apenas uma mancha de gordura e sangue, lentamente limpa pela chuva. O monstro cavalgou descansado pela estrada de barro, desceu a ladeira no Liberato e sumiu na boca da mata.