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CAVALO DESGRAÇA - II
Garganta tinha os olhos sérios, por aquelas bandas ainda não se havia domesticado o homem. Com expressão vaga, apresentava uma rigidez no jeito, gesticulava lentamente, dizia poucas palavras. De aparência simples, vestia-se como um velho Senhor: uma percata de couro, calça de linho e uma camisa desabotoada na altura do peito.
Acostumou-se a falar pouco, soltava meias palavras com o cachorro e o cavalo. Sobre um terreno pouco apresentável, ergueu um bangaio de uns cinqueta metros, escuro e com um cheiro frio, parecia com seu coração vazio. Fora a plantação e as crias que tinha, não gozava de nenhuma companhia.
Raramente frequentava a praça pra tomar uns porres com algumas figuras distraídas do vilarejo, coisa bem rara. Era um homem concentrado e bastante ocupado, passava o dia tomando conta de seus pertences. Muitos anos vivendo desse jeito, muitos invernos inferindo a convivência consigo mesmo.
De vez em quando, sobrava uns trocados e ele fazia uma visita à Pedra Escura, a comunidade mais próxima possível de se visitar, dava uns quinze minutos a cavalo, Garganta calçava a percata, contava os mirreis no bolso e só voltava pra casa no dia seguinte.
O Pavão era um bordel bem conhecido, os empregados da prefeitura frequentavam. Dizem que, costumeiramente, avistavam o prefeito atrás de menininhas novatas por lá. Barão, o dono do puteiro, guardava as mais novas e ingênuas para ele, assim rolava o boato. Seu gosto por adolescentes, muitas vezes o obrigava a fechar o cabaré, unicamente pra não atiçarem suas posses.
Foi em uma dessas que Garganta quase é arrancado o pescoço. Depois de acusado o enxirimento com uma das meninas do prefeito, levou uma pisa que o cavalo o trouxe pendurado. Com os quartos quebrados, passou três semanas de cama, quase morre não fossem os moradores de Azeredo. Dona Frizinha cuidou dele como um filho, levava comida e dava banho, tinha pena de Garganta," Um homem bom, trabalhador, mas infeliz, sem companhia, vivendo nos fundos do povoado, onde ninguém se interessa do coitado."
Depois do ocorrido, tudo se resolveu, Garganta continuou a frequantar o Pavão como fazia. Tinha batido nele, naquela noite, saudade das meninas. Fez duros corres durante a semana e estava bem perto de fechar, com o padeiro, cinco quilos de frango. Daria pra arrumar o armário e ainda sobraria uns mirréis pra se acabar na gandaia.
Cinco quilos de frango, ele negociou num preço baixo, pois as crias estavam magras, sem falar que daria os bichos vivos. Pegou pouco pelo trabalho investido, botou fé num galo que não deu muito certo. Mas era isso ou nada, adiantou o feijão e duas tiras de linguiça, o resto guardou para gastar no pavão.
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O Pavão estava em festa, do fundo do salão até a entrada, descia umas fitas coloridas e o salão cheirava a sabão puro, tinha umas toalhas na mesa e umas cumbucas com flores. Gaganta ficou encabulado se o prefeito não havia de estar naquele dia, por seu azar. Mas Joana, a mulher do dono só reforçou as mudanças na administração do negócio, pra melhorias mesmo.
Não esperavam o prefeito, apenas estavam dando um jeito nos negócios, o objetivo era chamar a atenção de Barreiros e Santa Luzia, dois povoados ao norte de Azeredo. Eram povoados mais distantes, mas bem mais ricos, muito movimentados e com muitos trabalhadores do engenho.
A cafetona olhou pra Garganta e perguntou se ele queria beber ou já iria pedir um quarto, enquanto falava das meninas. " Essas raparigas so querem dinheiro, mas não querem trabalhar, passam o dia todo sem fazer nada, quando acaba o dia só fazem comer. Ou a gente chama mais cliente ou essa birosca fecha." Garganta balançou a cabeça e sorriu sem graça. Abriu a cachaça, tomou uma dose braba e olhou pra procurar Maria.
Certamente ela não iria aparecer, na semana anterior tinha gasto tudo que tinha na mulher. Ele ficou doido mesmo pelo cheiro da jovem astuta, até vendeu os arreios que guardava com muito carinho, como herança do pai. Deixou um presentinho pra ela, achando conquistar a mulher, mas ela realmente não apareceu. Não tinha jeito, então o jeito era se satisfezer com a primeira que o agradasse.
Eram tantas horas da noite e Garganta ainda dividia a garrafa de cana com as outras mulheres da casa. Não se importava, já havia desabafado todas as suas angústias com Belinha por mais de meia hora, matou a sede e logo voltou para o salão. A bebida foi durando até a boca da madrugada, ele voltaria para casa sem remorso, não tinha mais dinheiro para erguer mais uma cachaça, mas havia deixado no Pavão toda tristeza acumulada durante as duras semanas..
As mulheres gostavam da companhia de Garganta naquele lugar. Depois da briga com o prefeito, até a cafetina da casa mandou umas ajudas para cuidar dos ferimentos, sua seriedade cativava as pessoas no Pavão. Naquela noite, ele saiu do reduto meio bêbado, meio sóbrio, apenas uma leve nuvem transparente o fazia mais calmo. A cachaça foi certeira.
Em Azeredo, a única rua que existia cortava um terreno rasteiro enorme. As casas, alinhadas até a calçada da igreja, pareciam se encaixar à estrada, onde à noite cruzava todo tipo de bicho. Corriam boatos de que algo de errado havia caído no povoado. Garganta pouco se importava com isso, seu cavalo tonante e bem cuidado pisava o terreno com elegancia, era da raça parda, ouvia o dono chamar seu nome e logo atiçava. Garganta puxava a rédea, pois nem se via a sombra, apenas a trilha, uns rastros.
Na manhã seguinte, Garganta acordou cansado mais que o comum, suas mãos estavam frias e uma forte dor nas costas incomodava, pensou que fosse a cahaça ruim bebida no Pavão.
O desconforto nos quartos, parecia ter levado um cavalo no ombro, sua pele estava um pouco escura. Apertou os dedos para conferir os sentidos, imediatamente saíu um líquido transparente, como se o suor tivesse sido expremido de um pano, isso não o fez despertar tanta coisa, foi até o quintal e lavou o rosto, tirou a camisa, expremeu mais um pouco e a água saia das pontas dos dedos, continuou indiferente.
Olhou de lado e seu cavalo também parecia estranho, Estrela Balançava a crina sem parar, pois dela jorrava um líquido parecido com os que saiam dos dedos, escorria pelas pernas até as patas.
De forma inexplicável, o cavalo expulsava água de dentro dele como um olho de rio, sem parar. Daí em diante, as coisas ficaram realmente cabulosas, pois crescia bem no meio de sua barriga um caroço do tamanho de um limão, surgido da noite para o dia. Garganta sentiu um arrepio e seus olhos tomaram uma mancha vermelha .
Teimou em puxar a pele com beliscões, mas não sentia o couro grosso, apenas uma flacidez dolorosa, tão fina quanto a de um recém-nascido. Suas mãos não paravam de suar. Percebendo a gravidade da situação, voltou imediatamente para a cama e, em poucos minutos, começou a estribuchar como um cachorro envenenado. Já era meio-dia, e as crias ciscavam no terreiro atrás de comida, mas Garganta ainda não havia aparecido